*Contém
Spoilers — O objetivo deste relatório foi
promover a reflexão e a leitura crítica da mensagem do filme, destacando as
características emergentes e percorrendo todos os tentáculos relacionados com o
tema em questão. Além disso, inspirar os leitores por meio da apresentação do
filme, a observação, avaliação, sensibilidade e experiência estética.
Central do Brasil
Central do Brasil é um filme brasileiro de 1998 dirigido por Walter Salles, produzido pela VídeoFilmes, escrito por João Emanuel Carneiro e Marcos Bernstein, e estrelado por Fernanda Montenegro e Vinícius de Oliveira. A fotografia foi dirigida por Walter Carvalho e a música (que levou cerca de quatro meses para ser composta) foi por Antônio Alves Pinto e Jaques Morelenbaum.
O drama ocorrido no Brasil custou cerca de dois milhões e novecentos mil reais. A trama, que terminou com nove semanas de filmagens, é sobre Dora, uma professora aposentada que trabalha como escritora para analfabetos na estação Central do Brasil (Rio de Janeiro), e que ajuda Josué a encontrar seu pai (Jesus) no nordeste.
A crítica especializada elogiou a direção, o enredo, as atuações e a música, tornando o filme uma obra de sucesso, celebrando o cinema nacional e beneficiando as respectivas produções no país. Ganhou vários prêmios em festivais ao redor do mundo e foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano seguinte à sua estreia.
Antes de prosseguir com a análise, gostaria de destacar a participação do polonês Frans Krajcberg e de Maria do Socorro Nobre na concepção da obra.
Na década de 1970, Frans esteve em Ilhabela (SP)… Fernando Silva promoveu uma campanha contra as queimadas e o desmatamento na ilha, trazendo três troncos de árvores para o município e colocando-os em locais estratégicos: nas Praças da Barra Velha e da Mangueira no Perequê.
Na época, o prefeito de Ilhabela, Eurípedes da Silva Ferreira, pediu a Yrae Aranha que desenhasse uma maquete da praça das mangueiras. Assim, Frans Krajcberg esculpiu um tronco de árvore, criando uma espécie de túnel para as crianças brincarem. Este trabalho ainda povoa a memória do povo de Ilhabela.
Em 1993, Frans concedeu uma entrevista à “Revista Veja”, onde falou sobre seu trabalho e a perda de sua mãe nos campos de concentração. Uma detenta chamada Maria do Socorro Nobre chegou a esta notícia. Quando Maria era prisioneira, ela ajudava seus ex-companheiros analfabetos escrevendo cartas para suas famílias. No entanto, lendo o artigo de Frans, ela decidiu escrever uma carta para ele.
Frans recebeu a carta inesperadamente e ficou impressionado com sua história. Apresentou a carta ao amigo Walter Salles, a mesma que falava de “busca e redenção”, e nesse momento tiveram a ideia de fazer um documentário sobre Maria.
Este trabalho foi apresentado na Europa em 1995. As ideias ganharam força e nos anos seguintes foi possível desenvolver o conceito que foi utilizado no filme Central do Brasil (1998)… A escrevedora Dora, interpretada por Fernanda Montenegro, é Maria do Socorro Nobre na realidade.
O Primeiro Rosto
Maria do Socorro Nobre foi convidada a participar do “Central do Brasil”. Ela aparece na primeira cena do filme e profere a seguinte frase: — Querido! Meu coração é seu. Não importa o que você tenha feito. Eu te amo! Eu te amo! Esses anos todos, que você vai ficar trancado aí dentro; eu também vou ficar trancada aqui fora te esperando.
Cansanção (Bahia) * Carangola (Minas Gerais)
Nos primeiros minutos do filme, vemos os brasileiros como personagens da trama. Fotografia que expressa à coletividade, promovendo os sentimentos do público que se sente representado em qualquer discurso. Aqui ficam evidentes as mensagens da trama — abandono, analfabetismo, desigualdade social e migração — então continuamos com a personagem de Dora, escrevendo cartas para pessoas como nós, cheias de sonhos, saudades e esperanças.
A cena reflete uma realidade no país! Temos Josué (sem pai e mãe) e duas professoras aposentadas. Não é um, mas três órfãos sobre a mesa.
Realidade e Aceitação
A estação de trem é uma foto que nos faz refletir o tamanho do país, com cenas que expressam o movimento. As pessoas vão e vêm em busca de seus desejos num cenário de pobreza. Esta é a realidade da personagem Dora.
Uma professora aposentada que trabalha como redatora de cartas naquela estação. Muitas vezes perde a paciência com os clientes e mente quando diz que põe os envelopes no correio, mas não manda as cartas que escreve. Ela as guarda numa caixa (segundo Irene, ‘no purgatório’) e até as rasga.
Seus traços de personalidade ficam claros para o espectador. Dora vem de uma triste história — a morte da mãe, a ausência do pai — logo vemos uma mulher que aprendeu a ser forte, aceitando as condições que a vida lhe deu.
No cenário de pobreza e perigo, ela aparece como uma personagem fria, rígida, mentirosa e outros adjetivos que usa para sobreviver. Algo que “talvez” ela não conseguiria se tivesse um apego emocional — ou sim — mas o sentimento, nessas circunstâncias, tornaria o fardo muito mais pesado.
Isso explica que naquele primeiro momento ela não conseguiu manter um bom relacionamento com o menino Josué. Devido aos golpes que a vida lhe deu. Dora parece ter perdido seu senso de humanidade — fato! Ela vende o garoto para dois recrutadores… Isso é consertado graças a “Santa Irene”.
De Adulto para Adulto
Embora Josué tenha nove anos, ele tem uma personalidade muito forte. Se tirássemos o pião dele (nas cenas iniciais) e os momentos dele jogando bola (quando ele conhece os irmãos), esqueceríamos que ele é uma criança.
No filme, chama a atenção o diálogo entre Josué e Dora, eles conversam como adultos. Não há conversa entre a criança e o adulto, ou vice-versa. Eles seguem falando no mesmo nível.
À medida que aprendem a confiar no outro, eles compartilham pensamentos e brincam mais próximos. Ele corrige as atitudes dela e ela o ensina sobre a vida, sempre dando a impressão de que há dois adultos em cena.
Essa proximidade entre os personagens, estaria relacionada ao fato de ambos vivenciarem a dor da rejeição. No filme, vemos que leva tempo para confiar no outro. Seriam estas as feridas e o medo de reviver as mesmas angústias?
Dora, a professora aposentada, usava o poder da comunicação para controlar as situações em que vivia. No entanto, ao conhecer Josué, percebeu que não poderia atuar ou fingir com ele. As aventuras vividas nesta viagem pelo interior ajudaram-na a encontrar um canal de comunicação com o menino, baseado na espontaneidade e verdade do gesto.
À medida que os personagens descobrem esse mecanismo, eles começam a nutrir essa realidade e prosperar no mesmo envolvimento emocionante e participativo.
Dora e Josué na rua do conjunto habitacional. Estas cenas foram filmadas no bairro de Vila Serrana II, localizada em Vitória da Conquista.
A Escolha do Menino Josué
Quando o diretor Walter Salles contratou Vinícius de Oliveira para interpretar o menino (Josué) no filme, o garoto nunca tinha ido ao cinema e nada sabia sobre as atrizes, Fernanda Montenegro e Marília Pêra.
Ele tinha 11 anos na época das filmagens e Walter o encontrou no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Vinícius estava lá engraxando sapatos no lado de fora, quando entrou procurando alguém para engraxar. Ele encarou o diretor, mas viu que não funcionaria porque Walter estava usando tênis.
Vinícius então foi até ele e pediu uns (trocados). Walter disse que o dinheiro não dava, mas compraria um lanche para ele. Durante o almoço, Walter notou uma expressão diferente no rosto do menino e seguiu seu instinto de que ele era a pessoa certa para o papel. Quando Vinícius foi questionado se aceitaria fazer um teste, ele respondeu que (sim), então o diretor lhe disse a data e o endereço do estúdio.
Cerca de 1 500 audições de Josué foram realizadas no Brasil ao longo de sete meses. Apenas cinco se classificaram, mas antes de bater o martelo, Walter quis testar Vinícius, que não apareceu no dia marcado. O diretor mandou uma equipe procurá-lo no aeroporto e, ao encontrá-lo, o levaram ao estúdio da “VideoFilmes”. Bingo!
Central do Brasil foi o primeiro trabalho de Vinícius no cinema e isso influenciou muito para com uma atuação crua, limpa, sem vícios ou referências. Se ele soubesse o tamanho das atrizes com quem estaria contracenando, talvez tivéssemos um comportamento mais controlado. Foi definitivamente uma escolha sensacional e que somou positivamente no trabalho, que se transformou em um hino de otimismo para o país.
Referências Religiosas
Os nomes dos personagens do filme contêm elementos religiosos que remetem a figuras bíblicas — Josué (filho), Ana (mãe), Jesus (pai), Isaías e Moisés (irmãos), César (caminhoneiro), Irene (amiga e vizinha de Dora)…
A personagem 'Irene' é vivida pela atriz Marília Pêra, esse nome significa (paz, pacificadora), como vocês podem ver no filme, ela é uma pessoa muito calma. (Santa Irene).
A cena que se passa no apartamento de Dora — que parece um vagão de trem — foi filmada em estúdio. Aqui Josué menciona que seu pai é carpinteiro (como o José na Bíblia).
No filme, acompanhamos Dora e Josué em busca de um homem chamado “Jesus”. Nessa busca constante, eles enfrentam muitas provações, mas nunca desistem de seguir… Pega a referência: Jesus é o caminho.
Estas cenas foram filmadas no Distrito de Cruzeiro do Nordeste — Sertânia — no sertão de Pernambuco. No entanto, para o enredo do filme, estes cenários formam à fictícia (Bom Jesus do Norte).
Espiritualidade
A crença ainda circula a cada momento da história, mostrando a forte ligação do Brasil com as crenças espirituais… Abaixo citamos alguns fragmentos:
O personagem César (interpretado por Othon Bastos) revela-se evangélico, e no seu caminhão notamos a frase: “Tudo é força, só Deus é poder”. Quando ele faz uma pausa para descarregar, seu amigo da mercearia também é cristão e eles conversam algo sobre a fé do mundo.
No restaurante, César observa os jeitos de Dora e Josué. Ao chegar, ouve um
recado do rapaz sobre as suas namoradas, já na mesa Dora o convence a tomar
cerveja. Então ela tenta segurar a mão dele… Posteriormente o vemos viajando
sem eles… César, um homem de fé, teria se incomodado com aquele comportamento
mundano?
Na comitiva, Josué acompanha uma oração a Nossa Senhora das Candeias, enquanto cenas revelam os diversos elementos religiosos daquele cenário.
Dora e Josué chegam à cidade de Bom Jesus dos Perdões, onde começam uma discussão. O menino foge no meio da procissão de Nossa Senhora das Candeias. Enquanto Dora tenta alcançá-lo, testemunhamos a fé daqueles que seguem as velas e as orações, dando graças pelos milagres e bênçãos alcançadas.
Nossos protagonistas fazem um retrato ao lado da estátua do Padre Cícero. Ambos recebem um monóculo fotográfico, uma peça ‘vintage’ que foi popular entre os anos 1960 e 1980.
A Procissão
A cena da procissão foi filmada na região do Cruzeiro do Nordeste, na cidade de Sertânia, interior de Pernambuco. Havia cerca de 700 pessoas naquele dia e eles figuraram por várias horas. Chega um momento em que Walter Salles precisa de pelo menos 50 figurantes para completar uma cena. Embora estivessem cansados, as 650 pessoas restantes não foram embora. Elas permaneceram no local e fizeram uma verdadeira procissão, se ajoelhando e orando, algo que não estava no ‘script’.
Essa participação coletiva no trabalho da equipe foi um dos marcos durante as filmagens. Você consegue imaginar a energia concentrada naquele lugar? Pessoas emotivas, todo aquele amor e a sensação de corações inflando e subindo como balões.
Pietá de (Michelangelo)?
Em uma falésia na região do Cruzeiro do Nordeste, na cidade de Sertânia, sertão do Moxotó (315 km de Recife); incendiou a imaginação dos críticos de cinema… Na cena em que Dora acorda deitada nos braços de Josué, há quem se refira a Pietá, escultura feita por Michelangelo.
A escultura que está na Basílica de São Pedro (Estado do Vaticano) mostra Jesus morto nos braços de sua mãe. Segundo os críticos, essa referência parece ter sido alterada no filme; em vez da mãe segurar o filho é o menino que a acolhe.
Sim ou não? Tanto faz! A função de um quadro é fazer as pessoas pensarem, mesmo aquelas que se dizem sábias. A imaginação é livre e chamamos isso de arte… Central do Brasil é assim! Uma obra maravilhosamente esculpida por artistas.
O Recomeço
Quando Dora acorda nos braços de Josué, vemos isso como uma etapa do restabelecimento da amizade. Dora parece mais compreensiva com ele. Nesse momento, vemos como o menino confia mais nela e percebe que um precisa do outro para continuar.
A Esperança
A esperança vem da ideia de Josué de promover ao público o talento de Dora, assim seguimos com a escritora, revelando novos fragmentos da história de um povo sofrido, mas com sua fé inabalável.
Outra história Real
Nessa cena, José Ferreira da Silva contou a equipe sobre o desaparecimento do filho após ele se mudar de Arcoverde (Pernambuco) para Castanhal, no Pará. Esse depoimento foi apresentado no filme e através de Central do Brasil, exibido em vários cinemas, o menino que assistiu ao drama reconheceu o pai na tela e foi ao seu encontro.
Aqui o diretor Walter Salles assumiu o papel da protagonista, ele se tornou o intermediário que levou a mensagem ao parente desaparecido… A vida imitando a arte!
Jesus…
O homem do interior não conheceu o filho Josué, que já tinha nove anos… Ao ler a carta para os irmãos Moises e Isaías, Dora acrescenta o nome do menino, mas não constava no papel… Momento (chave) onde os irmãos descobrem que Josué era realmente o irmão mais novo. Até então, o menino tinha se apresentado como “Geraldo”.
Nessa cena, o choro de Isaías, interpretado por Matheus Nachtergaele, fluiu naturalmente… Matheus revelou em uma entrevista que ficou emocionado enquanto Dora (Fernanda Montenegro) lia o papel.
O Adeus!
Convencida de que Josué estaria mais seguro morando na casa com seus irmãos, Dora os deixou pelo amanhecer. Ela pegou o ônibus de volta para o Rio de Janeiro — sem despedidas — A partida já dói demais, então por que complicar as coisas?
O Aprendizado
No filme, o menino Josué parece determinado do começo ao fim. Embora não conheça seu pai, ele continua em busca de sua família. Quem realmente vive uma transformação é a personagem Dora, que sofre uma grande mudança no drama.
Conforme a história avança, vimos que o destino daquele menino pegou a mulher pelas mãos e a arrastou pelo país. Aquela missão para com o garoto salvou a sanidade dela; da mulher cuja sensibilidade havia sido massacrada por causa da vida miserável que sempre viveu. Ele redescobre suas emoções e sua humanidade.
Voltando rapidamente às referências religiosas… Em hebraico, Josué significa “o Senhor salva” ou “o Senhor dá a vitória”. A forma grega deste nome é Jesus, e literalmente o menino foi o anjo transformador dessa mulher.
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